Por João Victor Silva, analista de mercado da Orsitec, formado em Relações Internacionais e Economia pela Boston University, nos Estados Unidos.

Na última quinta-feira (19/08), muitas pessoas se surpreenderam com a proposta, do Ministro Paulo Guedes, de criação de uma moeda única para o Mercosul. Aliás, esta não é uma ideia nova do “Posto Ipiranga”. Logo no início do governo Bolsonaro, Guedes já havia sugerido a criação de uma moeda única, o peso-real, entre Brasil e Argentina. Ademais, em abril de 2008, em sua coluna na revista Época, Paulo Guedes já defendia a união monetária dos países latino-americanos. Para muitos a ideia pode soar estranha. Afinal de contas, grande parte dos países do continente são caracterizados pelas suas fragilidades institucionais e instabilidade econômica, fruto da hegemonia de políticas populistas na América Latina. Logo, a unificação monetária poderia ser uma fonte de instabilidade aos países do continente que adotam uma política econômica mais responsável.

Apesar de muitos economistas, inclusive liberais, criticarem a ideia de Guedes, a proposta de unificação monetária possui argumentos fortes e merece um debate mais aprofundado. 

Em primeiro lugar, deve-se considerar que a unificação monetária demanda que os países que desejam ingressar na união monetária convirjam economicamente para a proposta ter sucesso. Nesse sentido, para que o peso-real saia do papel seria necessário que todos os países do bloco passassem a adotar uma política fiscal mais austera, entre outras medidas que fortalecessem a estabilidade macroeconômica de seus países, inclusive com reformas institucionais que restringissem a adoção de políticas populistas e que pudessem comprometer a estabilidade da moeda única. 

Outro passo que os países precisariam dar é realização de uma ampla abertura comercial e, assim como acontece na Europa, os países latino-americanos deveriam permitir a integração de suas economias. Portanto, deveria se estabelecer uma área de livre comércio entre os países e estabelecer regras comuns em diversos setores da economia e da política como no mercado de trabalho, previdência, mercado financeiro, regulamentação bancária, regras sanitárias e política imigratória. Ou seja, de certa maneira, todos os países teriam que caminhar rumo à liberalização e à integração de suas economias, que as tornariam, consequentemente, mais eficientes. Afinal de contas, os países que não se adequassem às propostas para unificação monetária não entrariam no bloco e perderiam os ganhos que a integração entre as economias poderia trazer. Diferentemente da crítica de muitos economistas, a proposta do peso-real não traria danos à economia brasileira, pois não estaríamos “importando” problemas de economias em situação pior que a nossa, como a da Argentina. Pelo contrário, estaríamos “exportando” princípios econômicos liberais que fizessem os países do continente alcançar uma maior estabilidade econômica. 

Um terceiro ponto a ser considerado são os ganhos políticos internacionais que os países latino-americanos poderiam ter com a unificação monetária. Com um sistema monetário internacional hierárquico, as moedas de reserva global ganham maior autonomia para a realização de uma política monetária independente, além de favorecer a cooperação com os principais bancos centrais do mundo, os quais facilitariam o acesso a suas moedas em períodos de iliquidez, como experimentado durante a crise da COVID-19, em 2020, e durante a crise financeira global, entre 2008 e 2009. Ademais, com uma moeda mais próxima ao topo da hierarquia monetária, os países latino-americanos estariam menos sujeitos à ocorrência de fortes desvalorizações cambiais como ocorreu no início da pandemia, visto que o risco econômico para os detentores do peso-real seria menor, já que a moeda única ofereceria uma menor percepção de risco econômico. 

Todavia, é verdade que nem tudo são flores com a criação de uma união monetária. A própria Zona do Euro, que possui membros com instituições muito mais fortes que a dos países latino-americanos, quase foi ao colapso no início da década de 2010 com a crise dos PIIGS (Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha). Afinal de contas, como os países periféricos do bloco possuíam uma política fiscal pródiga e um baixo nível de competitividade econômica, a moeda comum acabava trazendo pouca flexibilidade a sua política econômica durante a crise. Como a depreciação do câmbio não podia ser usada como uma das chaves para o ajuste econômico, a austeridade fiscal foi a única saída para esses países. 

Além disso, as diferenças econômicas entre os países do bloco exacerbaram os desequilíbrios econômicos entre os países da Zona do Euro. Quando a moeda comum foi adotada, por exemplo, os países periféricos como Portugal, Espanha e Grécia experimentaram um verdadeiro boom econômico, pois eles vivenciaram uma forte queda nas taxas de juro, equiparáveis a de países muito mais sólidos economicamente do bloco, como a Alemanha, por exemplo. O aumento da confiança econômica nesses países fez com que muito dinheiro fosse investido nessas economias. Entretanto, este modelo se tornou insustentável quando percebeu-se que a realidade econômica grega não era a mesma da Holanda. Assim, a crise chegou aos países periféricos e quase levou ao colapso da moeda comum europeia.

Em última instância, a proposta do peso-real está completamente alinhada com o ideário liberal de Paulo Guedes. Afinal, a moeda única demandaria que os países latino-americanos adotassem políticas econômicas prudentes, que as suas economias se integrassem e que se adotasse uma política comercial do bloco voltada à abertura para o comércio internacional. No plano da política internacional, a América Latina também teria ganhos, pois com uma moeda forte, ganhar-se-ia maior independência monetária e maior capacidade de cooperação com outros bancos centrais. 

No entanto, a experiência do Euro nos mostra que uma moeda comum pode, às vezes, representar mais um fardo econômico do que um benefício. Nesse sentido, é fundamental que as lideranças do bloco econômico fiscalizem as políticas econômicas dos seus membros para que desequilíbrios econômicos sejam evitados, como no caso Europeu, e estabeleçam mecanismos de estabilização fiscal e monetária no caso da ocorrência de crises econômicas. 

Guedes não está louco quando sugere a criação de uma moeda comum para o continente. Sua ideia de que uma moeda comum possa liberalizar as economias latino-americanas e fortalecer o arcabouço institucional dos países do continente, poderia de fato transformar a América Latina em um local mais próspero e estável. No entanto, para o peso-real ter sucesso será necessária uma maturidade política que ainda está distante da maioria dos países do continente. Por enquanto, vale discutir a proposta e tentar fomentar o aparecimento de um novo paradigma econômico para a América Latina. Talvez, com o peso-real, podemos desfazer a análise precisa do ilustre economista Roberto Campos, que certa vez disse: “O que os governos latino-americanos desejam é um capitalismo sem lucros, um socialismo sem disciplina e investimento sem investidores estrangeiros”.